DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA DE UMA PESSOA SÓ, NA ESFERA DA RECEITA FEDERAL E A REGULAMENTAÇÃO DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 116 DO CTN
- SUMÁRIO: Apresentação do Tema; Da Alegação da Inconstitucionalidade do § único do art.116 do CTN; Dos Limites Legais: Elisão e Evasão Fiscal, Simulação e Dissimulação;Aplicação do princípio da boa-fé como critério para a desconsideração da Pessoa jurídica; Eficácia do parágrafo único do artigo 116 do CTN; Conclusão.
- APRESENTAÇÃO DO TEMA
A finalidade do presente artigo é analise da possibilidade da autoridade fiscal desconsiderar a pessoa jurídica constituída por profissional liberal ou prestador de serviço, ou seja, a “empresa de uma pessoa” e da regulamentação do parágrafo único do artigo 116 do CTN”. O estudo não visa esgotar o assunto, mas sim abordar de maneira geral.
A permissão para constituir “empresa de uma pessoa só”, encontra respaldo legal nos artigos 170 da Constituição Federal, artigo 50 do Código Civil e artigo 129 da Lei nº. 11.196/2005.
A opção pela empresa de “uma pessoa só”, decorre dos menores encargos e impostos, eis que a qualificação dos profissionais liberais ou prestadores de serviços, cujos salários geralmente são superiores a média pago no mercado, acrescidos dos encargos trabalhistas oneram os custos da empresa. Surge como opção para não manter o trabalhador na informalidade.
Já em relação aos profissionais liberais, estes não se submetem às altas alíquotas do Imposto de Renda das pessoas físicas e são tributados como pessoas jurídicas para compensar a redução dos encargos trabalhistas.
Ocorre que a Receita opõe-se à existência da “empresa de uma pessoa só”, a uma, por alegar que livra os empregadores do pagamento dos encargos trabalhistas, a duas, por entender que ocorre uma simulação do vínculo empregatício tendo em vista que os serviços prestados por profissionais liberais não são temporários, mas regulares, e por último por que o governo arrecada menos.
Vê-se, então, que além de multar empresas de uma pessoa só, os fiscais costumam determinar que sejam desconstituídas, o que muitos juristas consideram um abuso de poder.
Com base nessa premissa, foi aprovada a Lei da Super-Receita nº. 6.272/05 e a lei nº 10.593/2002 que regulamenta o trabalho o trabalho dos fiscais da Receita, da Previdência e do Trabalho.
Por sua vez, o presidente da Republica encaminhou ao Congresso Nacional um projeto de lei para disciplinar o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (CTN) como forma de evitar uma série de controvérsias jurídicas decorrentes da redação da conhecida “Emenda 3”.
- DA ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE do § único do art.116 DO CTN.
Discute-se no meio jurídico a constitucionalidade duvidosa do parágrafo único desse artigo acima citado. Entre os argumentos estão à violação a segurança jurídica e à separação dos poderes.
Arrematando as razões estampadas quanto à inconstitucionalidade do referido artigo, teoriza Ives Gandra[1], que o artigo fere a cláusula pétrea do artigo 60, § 4º, inciso II da CF/88, que é a da separação dos poderes quando autoriza o representante do fisco a deixar de aplicar a lei ao fato a que se destina, e a escolher, aquele que resulte mais oneroso, a partir de presunção de que o contribuinte pretendeu utilizar-se da lei para pagar menos tributos. Esclarecendo, que pelo artigo 116, não é a lei que deverá ser aplicada à hipótese impositiva, mas sim a intenção do agente de obter mais tributos, qualquer lei, apesar de rigorosamente seguida pelo contribuinte.
No que concerne à violação da segurança jurídica, explica o jurista citado[2], que admitir o agente fiscal possa desconsiderar uma operação legítima, praticada pelo contribuinte por entendê-la como a solução mais eficiente, do ponto de vista econômico e empresarial, apenas porque, para o fisco, o melhor seria que o contribuinte tivesse praticado uma outra operação que garantisse aos cofres públicos maior arrecadação, é gerar, permanentemente, a insegurança jurídica.
Portanto, vê-se que os princípio da legalidade tributária além de limitador do poder de tributar do Estado, pode ser considerado um instrumento de segurança jurídica e social do contribuinte. Neste sentido, o artigo 116 do CTN, necessita de regulamentação de lei em sentido estrito, ou seja, deverá definir todos os tipos para descaracterização do ato ou negócio simulado e caracterização do dissimulado , para que o fisco possa aplicá-lo sem ferir os princípios de garantia do contribuinte.
- DOS LIMITES LEGAIS
Na relação tributária os contribuintes comungam do pensamento que a carga tributária deve incidir de forma menos onerosa possível.
É fato também que o Estado tem o direito de cobrar tributos, mas só pode exigir dentro dos limites estabelecidos pela lei. As normas de direito tributário, mesmo adentrando nas relações de Direito Privado, não podem interferir nas relações entre particulares, pois a lei tributária disciplina as relações entre o fisco e o contribuinte.A partir do momento que o sujeito passivo da obrigação tributária tenha organizado seus empreendimentos, através de normas permitidas pelo direito privado, e com essa estruturação seus negócios sofrem uma tributação menor , o contribuinte apenas estará utilizando métodos permitidos em nosso ordenamento jurídico. O Fisco não poderá atuar diretamente na administração jurídico – privada da empresa, para causar maior tributação. [3]
O contribuinte dentro dos limites legais pode evitar a ocorrência do fato gerador. Os particulares têm livre vontade para adotarem os modelos jurídicos dispostos pelo legislador. A administração fazendária não pode efetuar censuras fiscais desconstituindo a maneira lícita adotada pelo contribuinte. O código Tributário Nacional, em seus artigo 109 e 110, prestigia os institutos de Direito Privado relacionados à integração e interpretação das normas tributárias.[4]
Diante da liberdade de não aplicar o que a lei não dispõe e de fazer o que a lei valida, é permitido ao contribuinte fazer uso de espaços em branco deixados pelo legislador.
Para melhor compreensão se faz necessário discorrer sobre algumas categorias, a seguir.
ELISÃO E EVASÃO FISCAL
Ocorrendo a hipótese de incidência surge à obrigação tributária, vínculo jurídico entre o fisco e o contribuinte. Essa situação gera um direito por parte do Estado de poder vir futuramente cobrar o adimplemento do valor do tributo devido pelo sujeito passivo dessa obrigação. Se não for entregue aos cofres públicos o valor monetário da obrigação, ocorrerá uma sanção por ato ilícito.[5]
Por conseguinte, segundo Pereira, caracteriza-se desse modo a evasão fiscal, sempre que o sujeito passivo utilize de formas jurídicas anormais, inadequadas ou atípicas para alcançar efeito econômico, obtendo vantagem tributária, sem que tais formas jurídicas sejam injustificáveis senão pelo interesse em obter vantagem tributária. [6]
Corroborando com esta linha de pensamento o profº Roque Antonio Carrazza, define evasão como instrumento ilícito que afasta ou diminui a carga tributária. Esclarece que a pessoa que produz um ato evasivo não adota uma postura jurídica lícita, ela desrespeita o ordenamento legal com práticas comissivas ou omissivas que reduzem ou evitam o tributo devido.
Já quanto à elisão fiscal, os termos utilizados para caracterizar á supressão ou redução dos deveres tributários são diversos e muitas vezes conflitam-se. A própria palavra elisão fiscal é usada com significados lícitos e eficazes como também em um sentido vinculado à simulação fiscal.[7]
No entanto, o exame da doutrina pátria demonstra que se consolidou no Brasil a utilização da expressão elisão tributária como economia lícita de tributos. A elisão tributária envolve sempre a não caracterização do fato descrito em uma hipótese normativa. Ela busca impedir a incidência da norma tributária e, com isso, suprimir, no caso concreto, a competência tributária administrativa. A elisão consiste em um procedimento conforme a lei e que não constitui, portanto uma conduta delituosa tipificada na legislação penal. [8]
SIMULAÇAO E DISSIMULAÇÃO
A definição de simulação nos negócios jurídicos é dada pelo Código Civil, no art. 167, parágrafo 1º :
Art.167: É nulo o negócio jurídico simulado, mas substituirá o que se dissimulou, se válido for na substância na forma.
- 1º Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:
I – aparentarem conferir ou transferir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem;
II – contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira;
III – os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.
Dessa forma, a simulação é um desacordo proposital entre a vontade interior e a declarada para criar um ato negocial que não existe, ou para esconder o negócio querido, iludindo terceiro, gerando a nulidade do negócio. [9]
Pela simulação, busca-se enganar alguém por método de aparência não verdadeira que esconde o real objetivo do negócio jurídico. Pode-se afirmar que existe uma falta de correspondência entre o negócio que as partes realmente estão praticando e o formalizado.
Ressalta-se a diferença entre simulação com dissimulação. De acordo com o Código Civil, a dissimulação é uma espécie de simulação relativa, enquanto a simulação é absoluta.
Assim, na simulação, ocorre uma crença falsa num estado não verídico. Tem o intuito de iludir sobre a existência de um fato falso, tornando o negócio nulo. Apresenta o que não há. A dissimulação (simulação relativa) esconde um fato existente do conhecimento ou de outra pessoa, ou seja, oculta o que é.[10]
Cabe dizer que, ocorrendo qualquer um desses casos, causando defeito no negócio jurídico, poderá ensejar a desconsideração da pessoa jurídica.
- 4. Aplicação do princípio da boa-fé como critério para a desconsideração DA PESSOA JURÍDica.
Na aplicação das normas jurídicas os princípios ocupam papel importante para sua compreensão e alcance.
Geraldo Ataliba entende que os princípios são linhas mestras, que norteiam o sistema jurídico; eles mostram os rumos a serem tomados por toda coletividade e consequentemente pelos órgãos do governo. [11]
Desse modo, sob pena de descumprimento com a ordem social, todos devem respeitar os princípios em todas as esferas do direito, inclusive quando se tratar de matéria tributária.
Neste norte, Celso Antonio Bandeira de Melo entende, que “violar um princípio é mais grave que transgredir uma norma qualquer”.[12]
A ação de tributar encontra respaldo nos princípios do nosso ordenamento constitucional. Como regra geral, princípio da boa fé deve ser norteador da relação jurídica estabelecida entre o contribuinte e fazenda.
A respeito do assunto, Ivan Tanil Rodrigues afirma “ter o legislador do parágrafo único do artigo 116 ter constituído uma dimensão ético-jurídica para o acionamento da desconsideração de atos e negócios realizados com o fito de reduzir a oneração tributária dos fins econômicos pretendidos, não sendo esta prática em si, reprovável , ou passível de desconsideração, pelo simples fato de o negócio estar inbuído do propósito de reduzir a carga fiscal incidente sobre o fim almejado.Por esta razão o legislador atribuiu a faculdade e não dever de desconsiderar atos, ainda que notoriamente praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação. Faculdade esta, porém que não importa em discricionariedade da Administração tributária mas em positivação de sua atividade que continuará a ser vinculada e, a toda evidência , obrigatória , para ao atos e negócios realizados por propósitos dissimulatórios eivados de má-fé.Revela-se como desleal e, por isto, contrária a boa-fé , a desconsideração de atos ou negócios que impõem ao agente econômico resultados negativos, nulos ou pífios, que, se vislumbrados anteriormente, fariam com que se mantivesse ele inerte, paralisando e assim, em nada contribuindo para o desenvolvimento da economia e sociedade nacionais.”[13]
Dentro do contexto exposto, podemos dizer que a idéia de equilíbrio está vinculada a necessidade de contrabalançar o poder de tributar da fazenda e os direitos dos contribuintes no tocante as garantias constitucionais.
Podemos concluir que o equilíbrio da relação-jurídica tributária só será alcançada por meio da aplicação do princípio da boa-fé, em que sejam respeitados por ambos as partes o direito de arrecadar e o dever de cobrar da fazenda.
- Eficácia do parágrafo único do artigo 116 do CTN
É fato que devido ao veto à Emenda nº. 3, referente ao projeto de Lei 6.272/2005, convertido na Lei 11.457/07, foi encaminhado pelo governo um projeto de lei para disciplinar o art.116 do CTN, cujo proposição principal é estabelecer procedimentos para desconsideração de atos ou negócios jurídicos, para fins tributários sempre que os atos ou negócios jurídicos sejam praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência de fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributaria.
Nesse contexto, não faltam opiniões de autoridades nessa área, alegando a inconstitucionalidade de tal regulamentação.
É o caso do professor Sacha Calmon, quando afirma “se somente agora o art. 116 do CTN está sendo regulamentado, então, todas as autuações baseadas neste artigo são nulas”. Afirma, ainda que no direito pátrio prevalece o princípio da legalidade tributária, e somente o poder judiciário, após o devido processos legal, poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos. [14]
Assim, é possível deduzir que para o parágrafo único do 116 do CTN conceder poderes aos fiscais da receita federal para atuar em casos de dissimulação da ocorrência do fato gerador por parte do contribuinte tornando tais atos ou negócios jurídicos como inexistentes, com eficácia plena, é necessária a regulamentação por lei ordinária, descrevendo todas as situações, inclusive em respeito aos princípio da legalidade e da tipicidade, vigas mestras do sistema tributário nacional, e garantidores da segurança jurídica.
Essa é nossa posição de acordo com os fundamentos expostos. No entanto, se faz necessário também que a fazenda prove a existência do fato gerador, bem como que o contribuinte tenha usado de artimanha para revesti-lo de outra forma.
No que diz respeito à possibilidade da autoridade fiscal desconsiderar a pessoa jurídica constituída por profissional liberal ou prestador de serviço, ou seja, a “empresa de uma pessoa”, entendemos que fere a liberdade de contratar assegurada na Constituição Federal no artigo 170, limitando os direitos fundamentais da livre iniciativa e da auto-organização.
Assim, têm-se uma norma de eficácia limitada, na medida que a plenitude da eficácia somente será obtida após a edição da lei ordinária, pois falta um elemento essencial à aplicabilidade do parágrafo examinado, sendo ilegal o ato administrativo fiscal que utilizar o parágrafo único do 116 do CTN como fundamento.
Para finalizar, registra-se a dispensa de prévia declaração judicial pelo fisco para desconsiderar negócio jurídico, quando ocorrer a prática de evasão fiscal.
- CONCLUSÃO
- Pelo que nos foi possível analisar, concluímos não ser possível a desconsideração de atos, negócios ou personalidade jurídica quando tais procedimentos estiverem revestidos de licitude.
- Por sua vez, o equilíbrio da relação jurídico-tributária só será atingido se respeitados por ambas as partes, o direito de arrecadar e a real capacidade contributiva das pessoas.
- Como tal deve prevalecer o equilíbrio entre a necessidade de arrecadar e o poder de tributar e os direitos dos contribuintes, em relação às garantias constitucionais.
- Desse modo, se a regra do parágrafo único do art.116 do CTN sofrer regulamentação na via ordinária permitindo a autoridade fiscal desconsiderar a pessoa jurídica constituída por profissional liberal ou prestador de serviço, afetará os direitos fundamentais da livre iniciativa e da auto-organização, além dos princípios da boa fé e da segurança jurídica.
Tânia Maria Françosi Santhias.
OAB/5799
[1] Martins, Ives Grandra da Silva.O planejamento Tributário e a L.C.104.São Paulo:Dialética, 2001,p.125/126.
[2] Martins, Ives Gandra da Silva. Norma anti-elisão tributária e o princípio da legalidade,à luz da segurança jurídica.RDDT 119/120, agosto/05.
[3] CF.ROCHA, Valdir de Oliveira(Coord) .Grandes Questões atuais do direito Tributário, p.106.
[4] Cf.CARRAZZA, Roque Antonio. Grupo de Empresas –Auto contrato – Não –incidência de ISS – Questões conexas. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n.94, 114-132, jul.2003.p.122-124.
[5] Cf. GUBERT, Pablo. Andrez Pinheiro. Planejamento Tributário: Análise jurídica e ética.
[6] PEREIRA, César A. Guimarães .Elisão Tributária e função administrativa, p.66.
[7] PEREIRA, César A. Guimarães .Elisão Tributária e função administrativa, p.24.
[8] Cf. ROCHA, Valdir de Oliveira(Coord). O planejamento tributário e ali complementar 104, p.25-27.
[9] FIUZA, Ricardo(Coord).Novo Código Civil comentado, p.167.
[10] DINIZ, Maria Helena.Curso de Direito Civil Brasileiro:Teoria geral do Direito Civil.20 ed.São Paulo:Saraiva, 2003.p.408.
[11] ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2ª ed.São Paulo:Malheiros Editores, 1998.p.34.
[12] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 772.
[13] RODRIGUES, Ivan Tanil.O Princípio Jurídico da Boa –Fé e o Planejamento Tributário .O pilar Hermenêutico para a Compreensão de Negócios Estruturados para obter economia Tributária.RDDT 93, jun./03
[14] CALMON Sacha. Ditadura Fiscal. Disponível em www.senado.gov.br.Acesso 28/07/2007.